domingo, 16 de setembro de 2012

Walt Whitman



Um minuto e uma gota de mim 
tranquilizam o meu cérebro:
eu acredito que torrões de barro
podem vir a ser lâmpadas e amantes,
que um manual de manuais é a carne
de um homem ou mulher,
e que num ápice ou numa flor
está o sentimento de um pelo outro,
e hão-de ramificar-se ao infinito
a começar daí
até que essa lição venha a ser de todos,
e um e todos nos possam deleitar
e nós a eles.

Walt Whitman, in "Leaves of Grass"

 

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Anaïs Nin - Debaixo de uma redoma

O farrapeiro trabalhava em silêncio, sem olhar para qualquer coisa que estivesse inteira. O seu olhar procurava o partido, o gasto, o desbotado, o fragmentado. Um objeto completo entristecia-o. Que podia uma criatura fazer com um objeto inteiro? Pô-lo num museu. Não lhe tocar. No entanto, um papel rasgado, um atacador de sapato sem par, uma chávena sem pires, isso era emocionante. Coisas que podiam ser transformadas, fundidas noutras coisas. Um pedaço de cano torcido. Maravilhoso o cesto sem asa. Maravilhosa a garrafa sem rolha. Maravilhosa a caixa sem chave. Maravilhosos metade de um vestido, o laço de um chapéu, o leque falho de penas. Maravilhosa a lata de uma máquina fotográfica sem máquina dentro, a roda solta de uma bicicleta, meio disco de gramofone. Fragmentos, mundos imperfeitos, farrapos, detritos, o fim dos objetos e o começo das transmutações.

sábado, 3 de março de 2012

Érico Veríssimo, em Solo de Clarineta

O meu amigo mais íntimo é o sujeito que vejo todas as manhãs no espelho do quarto de banho, à hora onírica em que passo pelo rosto o aparelho de barbear. Estabelecemos diálogos mudos, numa linguagem misteriosa feita de imagens, ecos de vozes, alheias ou nossas, antigas ou recentes, relâmpagos súbitos que iluminam faces e fatos remotos ou próximos, nos corredores do passado - e às vezes, inexplicavelmente, do futuro - enfim, uma conversa que, quando analisamos os sonhos da noite, parece processar-se fora do tempo e do espaço. Surpreendo-me quase sempre em perfeito acordo com o que o Outro diz e pensa. Sinto, no entanto, um pálido e acanhado desconforto por saber que existe no mundo alguém que conhece tão bem os meus segredos e fraquezas, uns olhos assim tão familiarizados com a minha nudez de corpo e espírito. Talvez seja por isso que com certa frequência entramos em conflito. Mas a ridícula e bela verdade é que no fundo, bem feitas as contas, nós nos queremos um grande bem. Estamos habituados um ao outro. (...)
Eu gostaria de simplificar o problema de meu "temperamento", apresentando-me como a manifestação duma dicotomia, segundo a qual tendências que herdei de minha mãe - sobriedade, senso de responsabilidade, devoção ao trabalho, à ordem e à normalidade - podem ser comparadas com os muros duma cidadela sitiada e repetidamente atacada por insidiosos e alegres bandos de guerrilheiros constituídos por certos componentes do caráter de meu pai: sensualidade, auto-indulgência, inclinação para o ócio e para uma espécie de hedonismo irresponsável.
"Mas a coisa não é assim tão simples e nítida" - observa o Outro - "Eu sei, eu sei" - respondo em pensamentos - "mas vamos adiante, companheiro. É pelos sendeiros do erro e da dúvida que havemos de chegar um dia ao reino da verdade".